CRÍTICA | Primavera em Casablanca

 

Filme traça uma linha cronológica para discutir a situação política e social da cultura árabe

 

De que vale a língua se calamos nossas vozes?

Essa é uma das primeiras e principais falas de Primavera em Casablanca, escrito e dirigido por Nabil Ayouch, e diz muito sobre o filme em si. “De que vale a língua se calamos nossas vozes?” o professor Abdellah (Amine Ennaji) pergunta em sua narrativa enquanto o governo teocrata de seu país impõe uma rígida reforma educacional. Tendo que ensinar as crianças em árabe – ao invés de berbere, língua que elas estavam acostumadas – enquanto é supervisionado, Abdellah se vê preso em um regime que traz conceitos religiosos como forma de controlar a sociedade. Abdellah não consegue mais ensinar as crianças a pensarem por conta própria, pois torna-se proibido questionar o governo. Desse modo, o professor acaba por desistir de lecionar.

A história de Abdellah é só uma das muitas histórias contadas em Primavera em Casablanca, mas é a que, de um jeito ou de outro, interliga todas elas. Além de Abdellah, cria-se também uma narrativa em torno de outros quatro personagens – Hakim (Abdelilah Rachid), um jovem cantor que sonha em ser reconhecido mundialmente; Salima (Maryam Touzani), uma mulher que sofre as consequências de um governo conservador; Joe (Arieh Worthalter), um judeu e dono de restaurante; e Inés (Dounia Binebine), uma adolescente que está se descobrindo no meio da tradição e da modernidade.

Desse modo, o diretor utiliza a criação desses cinco personagens principais para traçar uma linha cronológica da situação política e social de Marrocos dos anos 1980 ao tempo presente. Ou seja, cada personagem enfrenta um problema diferente de acordo com o que a sociedade marroquina impõe em determinada época. Durante o filme são discutidos assuntos como machismo, aborto, violência doméstica, preconceito contra artistas, preconceito contra judeus e muitos outros. São assuntos de épocas diferentes, mas que são sempre muito atuais.

 

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O grande leque de discussões pode ser um ponto positivo da escolha de Nabil Ayouch de utilizar vários personagens principais, uma vez que nos mostra que em uma sociedade existem diversos problemas acontecendo de uma só vez e que eles estão sempre interligados de algum modo. Mas, ao mesmo tempo, essa foi uma escolha arriscada pois, além de não dar ao roteiro a chance de se aprofundar em algum assunto, o filme traz muitas informações simultâneas que acabam dificultando a conexão do espectador com a história. Assim, Primavera em Casablanca acaba sendo muito mais prolongado e denso do que seria o ideal, fazendo com que o filme se perca.

Outra escolha arriscada de Nabil Ayouch foi mostrar os protestos e a revolução ao longo do filme de modo secundário: as manifestações fazem parte do filme o tempo inteiro, mas são ofuscadas pelas histórias individuais de cada personagem principal. O espectador entende que a luta está acontecendo está “lá fora”, mas se tem a impressão de que o filme tira o impacto da revolução árabe em prol da narrativa pessoal. Por outro lado, como o espectador acaba descobrindo, a beleza dessa escolha do diretor está no fato de que, eventualmente, Primavera em Casablanca nos mostra como cada pessoa acaba sentindo o impacto dessas manifestações em grande escala e acaba se envolvendo com isso, de um jeito ou de outro. Em uma cena emocionante, tudo acaba se interligando e torna-se notável que, na verdade, a Primavera Árabe é a protagonista da história. A narrativa de Primavera em Casablanca é arriscada, mas funciona como uma técnica impactante.

Apesar do assunto denso, o filme mostra uma clara preocupação com os detalhes. Em Primavera em Casablanca o forte e o delicado andam sempre juntos, o que acaba trazendo momentos íntimos e significativos para o contexto. Cenas como as da Salima na praia trazem, por exemplo, uma conotação de desejo pelo respeito e pela liberdade (coisas que estão sempre colocadas em jogo no filme); temos também cenas brutalmente delicadas, como a cena em que Hakim canta “I Want to Break Free” e a câmera mostra a palavra “freedom” (liberdade) tatuada em seu peito, mas a tatuagem está exatamente embaixo do colar de ferro do personagem – uma espécie de corrente, simbolizando sua busca pela liberdade em um governo opressor e em uma sociedade preconceituosa, ou seja, ele se sente preso. É claro que nada disso é coincidência – são detalhes muito bem pensados que trazem uma beleza sutil ao filme.

 

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Como se não bastasse, Primavera em Casablanca ainda consegue mostrar o contraste gritante entre a realidade dos Estados Unidos (ou de qualquer outro país laico) e de Marrocos, país teocrata. Para isso, o filme constantemente faz referências ao filme americano Casablanca (lançado em 1942), comparando-o com Casablanca, cidade de Marrocos onde grande parte do filme é ambientado. De modo triste e realista, Primavera em Casablanca nos mostra que, quando se está sob domínio de um governo opressor, não existe a magia de Hollywood, tampouco a realidade democrática e não-violenta que vemos em outros países.

Mais do que isso – e aqui, inclusive, entra o papel do professor Abdellah – Primavera em Casablanca nos mostra a consequência brutal de um governo que controla a educação de modo a alienar seu povo. Abdellah se faz presente no começo e no final do filme para nos dizer como a educação, se ensinada de modo correto, pode fazer a diferença. A falta de consciência social faz com que a opressão, o preconceito e a violência continuem iguais, não importa quanto tempo passe.

Assim, Primavera em Casablanca pode não ter uma narrativa dinâmica e fácil de digerir, mas é um filme que usa e abusa da realidade de um governo opressor e teocrático para, no final, mostrar ao espectador como a falta de liberdade poderia ser evitada com uma boa educação, desvinculada a um sistema opressor. Então, de que vale a língua se calamos nossas vozes? O filme é, principalmente, uma aula sobre como a língua só é válida quando o povo usa sua voz – e é através desta que se conquista a democracia.

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